Calçada da Glória

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No início do século XVI, o território em que este arrumamento se encontra pertencia à Paróquia de Santa Justa. Em 1527, o Alcaide de Lisboa e Cavaleiro da Casa Real André Dias requereu aos padres dessa paróquia um aforamento dessas terras, comprometendo-se a pagar uma renda perpétua de 2000 reis. Nesse sentido, foi-lhe concedido um Breve pelo Santo Padre Clemente II, tendo aí levado a cabo o arroteamento de uma quinta, no que ficou designado como emprazamento, ou prazo de Santa Justa.

O usufruto deste terreno transitou depois para Fernão Paes (m. 1578), que em 1570 ali erigiu uma capela dedicada a Nossa Senhora da Glória. No seu testamento, redigido no dia 28 de Maio de 1577, e aprovado no dia 8 de Junho desse ano pelo tabelião público Diogo Gorelha, a sua devoção é  inequivocamente espelhada:
“Item mando que cada um anno me digam na ermida de Nossa Senhora da Gloria, para sempre, por dia de Nossa Senhora da Gloria, que é em Agosto, uma Missa cantada pela alma de meu Pae e Mãe e minha, e todas as sextas feiras dos annos, e sabbados, Missa resada de requiem; e para essa perpetua obrigacão se cumprir, tomo os rendimentos todos da minha quinta de Nossa Senhora da Gloria, que me custou muito dinheiro as bemfeitorias d'ella ; e quero que ande tudo encorporado com seu encargo de fòro commum; a saber: a Santa Justa dois mil reis cada anno enfatiota em vidas.”
 
No seu túmulo, assente junto desta capela, lia-se o seguinte epitáfio:
“Esta sepultura é de Fernão Paes, cidadão da cidade do Porto, que edificou por sua devoção esta casa de Nossa Senhora para si e seus herdeiros, à sua custa. P.N. Faleceu na era de 1578”

Durante esta década travava-se um conflito de secessão nos Países Baixos, na época sob domínio espanhol conhecido pela Guerra dos 80 anos (1568-1648). O exército liderado pelo Staudhouder Príncipe Guilherme de Orange-Nassau (1533-1584) encabeçou a revolta orientada para libertação da influência de Espanha. O Rei D. Filipe II (1527-1598) defendia fortemente a doutrina da Igreja Católica, em claro contraste com a Reforma Protestante, de que Martinho Lutero (1483-1546) havia sido precursor no dia 31 de Outubro de 1517, aquando da afixação das suas 95 teses para o “debate sobre o esclarecimento do valor das indulgências” na porta do Castelo de Wittenberg (Alemanha), nas quais criticou e propôs uma revisão de diversos pontos do catolicismo.
Deste modo, as igrejas católicas foram alvo de sucessivos ataques que desencadearam a fuga das comunidades religiosas para fora do país. De entre as inúmeras freiras que partiram da cidade de Alkmaar que para vários pontos na Europa, um pequeno grupo chegou a Portugal em 1852, altura em que Filipe II já havia sido coroado Rei, assumindo o título de Filipe I de Portugal. Recolhidas no Mosteiro da Madre de Deus no Algarve, o Provincial requereu uma audiência com o rei para reportar a situação. Chamadas à sua presença no dia 11 de Dezembro desse ano Filipe I garantiu-lhes protecção e acolhimento, tendo ordenado que ocupassem o sítio da Nossa Senhora da Glória, onde permaneceram durante quatro anos até à sua transição definitiva para o Convento de Nossa Senhora da Quietação no dia 8 de Dezembro de 1586.

Foi exatamente neste ano que a herdeira do prazo de Santa Justa, D. Francisca Paes faleceu, tendo ficado nomeado o seu marido Nuno Fernandes Mascarenhas como legítimo sucessor.
Volvido um século, a Quinta de Nossa Senhora da Glória constituiu um dote atribuído à Condessa de Castro d’Aire, D. Helena de Castro, por ocasião do seu casamento com o Conde Jerónimo de Ataíde no dia 6 de Junho de 1627.
Depois do Terramoto de 1755, foi nesta zona recuperado o palácio pertencente aos Condes da Castanheira pelos proprietários à época, os Condes de Lumiares. Alinhado com a Rua Ocidental do Passeio Público (futura *Avenida da Liberdade), apresentava em meados da década de 1760 uma longa linha de arvoredo que se estendia até à *Calçada da Glória, mantendo a ermida de Nossa Senhora da Glória e o acima referido túmulo de Fernão Paes.
Após uma reconstrução decorrente de um incêndio ocorrido em Agosto de 1865, a entrada para o pátio fazia-se pela *Travessa da Glória, através de dois portões gradeados. Finalmente, as dependências, onde se encontrava a ermida, localizavam-se na esquina entre a Travessa e a *Rua da Glória.
Segundo as descrições de *Júlio de Castilho (1800-1875), que a visitou no dia 11 de Novembro de 1902, nesta data, a capela tinha uma só nave com três altares. No altar-mor encontrava-se uma escultura em tamanho real da Imagem de Nossa Senhora da Glória, ladeada por Santo António e por São Domingos. A sacristia era contígua à capela-mor, sobre a Rua da Glória.

Observando atualmente o mapa de Lisboa, poder-se-á inferir a delimitação deste espaço através da sua toponímia. Verifica-se praticamente um substancial retângulo cujos lados são a *Avenida da Liberdade, a *Calçada da Glória, que se liga à *Rua Santo António da Glória através da *Travessa do Fala-Só e a *Rua Conceição da Glória. Este retângulo é atravessado na sua totalidade pela *Rua da Glória, que se liga à Avenida da Liberdade através da *Travessa da Glória.
Embora ligeiramente mais afastada, a *Travessa da Conceição da Glória inclui-se também nesta relação, visto que de acordo com os registos do Cartório da Basílica de Santa Maria Maior (1752), ficaria localizada na zona limítrofe que separava o Prazo de Santa Justa e o Prazo da Cotovia.
Estas últimas, estão relacionadas com o Colégio ou Albergue dos Clérigos pobres de Nossa Senhora da Conceição, questão a desenvolver nas Rua e Travessa Conceição da Glória.

Designado Calçada da Glória, este arruamento inicia-se na Praça dos Restauradores e termina na Rua de São Pedro de Alcântara.

Bibliografia

Araújo; Norberto de (1938). Peregrinações em Lisboa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira;

Castilho, Júlio de (1903). Lisboa antiga. Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos;

Freire, João Paulo (1937). Minudências lisboetas: rápidos aspectos da Lisboa antiga.  Porto: Simões Lopes;

Macedo, Luís Pastor de (s.d.) Ficheiro Toponímico. Lisboa: Gabinete de Estudos Olisiponenses;

Melo, Ana Homem de (s.d.). Rua da Glória. Gabinete de Estudos Olisiponenses.

Veja a localização desta rua no mapa