Travessa da Procissão

Image

Travessa da Procissão. Celebração religiosa.
 
De acordo com Filipe Folque (1800-1874), que desempenhou o cargo de Director-Geral dos Trabalhos Geodésicos e Topográficos durante o reinado de D. Maria II, este arruamento está associado à Procissão do Corpo de Deus. Tal como verificável na edição que dirigiu, Atlas da Carta Topográfica de Lisboa, neste conjunto de 65 plantas coloridas no âmbito da cartografia de Lisboa, a Travessa da Procissão encontrava-se muito próxima da Rua da Procissão, cuja designação foi alterada para *Rua Cecílio de Sousa por Edital do Governo Civil de 18 de Junho de 1926.
A procissão Corpus Christi, em Portugal, procissão do Corpo de Deus, ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Deus, foi instituída para toda a igreja pelo papa Urbano IV (c. 1195-1264, cujo nome de baptismo era Jacques Pantaleón) com a promulgação da Bula Transiturus de hoc mundo no dia 11 de Agosto de 1264.

Trata-se de uma das mais antigas procissões de Lisboa, inúmeras vezes designada como a procissão das procissões. Apresentava um carácter de festa aberta a todos os estratos sociais. Portugal foi um dos primeiros países a aderir a este rito, comemorado no sexagésimo dia após a Páscoa, mais especificamente, na Quinta-feira que se segue ao Domingo da Santíssima Trindade (primeiro Domingo após o Pentecostes, a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo).
Embora celebrada enquanto solenidade desde o reinado de D. Afonso III (1210-1279), no formato de procissão a sua origem remonta ao período de governação de D. João I (1357-1433), tendo ocorrido pela primeira vez em 1389. Dois anos depois, no dia 5 de Abril, o rei autorizou aos lisboetas o uso de armas e de cotas douradas durante as festas, obedecendo a um protocolo de acordo com a estratificação social.

Os triunfos alcançados por D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431) contra o reino de Castela, sobretudo na Batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385), elevaram São Jorge a santo padroeiro de Portugal. A devoção de D. João I e de D. Nuno Álvares Pereira, que inclusivamente atribuiu a este santo a responsabilidade da vitória nessa batalha, consubstanciou-se através da implementação da sua imagem nesta procissão, associando-a à festa.
Demorando várias horas a caminhar, o cortejo caracterizava-se pela utilização de carros alegóricos, danças, cenas de autos sacramentais, constituindo-se enquanto um ritual religioso e simultaneamente evento social.

O trajecto percorrido assentava em espaços simbólicos da cidade. Iniciava-se no Castelo de São Jorge (representando os que lutavam, a Nobreza), onde a imagem do santo era colocada sobre um cavalo, guardada por um soldado de cavalaria que envergava uma armadura. Este estaria incumbido de proteger o santo padroeiro da cidade e defensor da fé cristã, zelando pelo ouro e pedras preciosas que revestiam o chapéu e os trajes de São Jorge. O transporte da imagem era também levado a cabo pelos criados do Paço ao som de trombetas e tambores.

O segundo momento registava-se na Sé Catedral (representando os que rezavam, o Clero). Aqui era celebrada uma missa onde o Cardeal Patriarca elevava a Custódia (Corpo de Deus) aos presentes e a preparava para que,  finda a celebração, surgisse à porta da igreja sob um pálio, rodeado pela família real e pela nobreza, formando-se a procissão, na qual o rei e os infantes tomavam uma das varas (geralmente a primeira da direita), sendo as restantes destinadas ao Presidente do Senado da Câmara e à antiga nobreza.

O terceiro e último momento constituía o percurso até aos principais arruamentos da Baixa lisboeta (representando os que trabalhavam, o Povo), antes passando pela Igreja de *Santo António e pela Madalena, retornando finalmente à Sé Catedral.
Durante o reinado de *D. João V (1689-1750), a sumptuosidade deste cortejo atingiu proporções mais elevadas. Os diferentes estratos da população eram na época representados por associações sócio-profissionais, bem como por delegações das Ordens Religiosas. Existiam também paragens concebidas para representar glórias de São Jorge, para executar danças entre outras formas de cultura expressiva.

Esta procissão e seus passos poderá ser brevemente resumida no aviso público do rei D. José I (1714-1777), assinado pelo Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, Marquês do Alegrete:
“Quinta feira 13 do corrente vai Sua Magestade à Santa Igreja Patriarchal e acompanha a Procissão do Corpo de Deos e he Servido que Vossa Exelencia se ache no Paço as outo horas da manha para o acompanhar e lhe assistir trazendo o manto da sua Ordem para o levar na Procissão e na mesma Santa Igreja hade Sua Magestade, e os senhores Infantes Dom Pedro, Dom Antonio, e Dom Manoel pegar nas varas do Palio, e he o mesmo Senhor servido que Vossa Excelencia como Prezidente do Senado da Camara desta Cidade pegue na vara, que lhe tocarem similhante função, que he a que se segue aos Senhores Infantes athe fora da porta do Pateo, aonde a hade largar, e na volta da Procissão hade Vossa Excelencia tornar a pegar na mesma vara do dito sitio athe a Santa Igreja Patriarchal. E na quinta-feira seguinte, se achara Vossa Excelencia tambem no Paço às sinco horas da tarde para acompanhar ao mesmo Senhor que vai a referida Santa Igreja Patriarchal assistir a Procissão do outavo dia, Deos guarde a Vossa Excelencia 11 de Junho de 1754”

Foram vários os atentados contra a família real no decurso desta procissão. D. João IV (1604-1656) sofreu uma tentativa de assassinato por Domingos Leite e Manuel Roque que, vindos Espanha, chegaram a Lisboa em Maio de 1647, alugaram três casas na Rua dos Torneiros na freguesia de São Nicolau. Estas habitações acompanhavam uma pequena praça por onde a procissão iria passar. No entanto, no dia 20 de Junho de 1647, o atentado foi gorado e Domingos Leite foi executado no dia 16 de Agosto de 1647, tendo-lhe as mãos sido decepadas antes do seu enforcamento. O seu corpo foi cortado aos pedaços que expostos durante vários dias em praça pública.

No local do atentado, a rainha D. Luísa de Gusmão (1613-1666) mandou construir um convento dedicado ao Santíssimo Sacramento, ocupado pela Ordem dos Padres Carmelitas Descalços. Este evento inspirou o autor *Camilo Castelo Branco (1825-1890) a publicar as obras O Regicida (1874) e A filha do regicida (1875).
O rei D. Manuel II (1889-1932), terá sido igualmente alvo de um atentado nesta procissão, desta feita, junto da Igreja da Vitória.

Designado Travessa da Procissão, este arruamento inicia-se na Rua Cecílio de Sousa e termina na Rua de São Marçal.

Bibliografia

n.a. (1819). Gabinete histórico que a sua Magestade Fidelíssima o Senhor Rei D. João VI em o dia dos seus felicíssimos annos, 13 de Maio de 1818, oferece Fr. Cláudio da Conceição. Tomo IV. Desde 1640 até 1668. Lisboa: Impressão Régia.
n.a. (1833). Duas sentenças proferidas no tempo da guerra da acclamação. Primeira Contra o alveioso Domingos Leite Pereira, que quiz matar atraiçoadamente ao Senhor Rei D. João IV, em 1647. Segunda contra o traidor D. Fernando Telles de Faro, que desamparou a Embaixada de Hollanda, e fugio para Castella em 1659. Lisboa: Impressão Régia.
n.a. (1908). El-Rei na Procissão do Corpo de Deus in Ilustração Portuguesa, Vol. 5.º, N.º 123;
n.a. (1908). El-Rei D. Manuel pegando à primeira vara do palio, na Procissão do Corpo de Deus in O Ocidente, Vol. XXXI.º, N.º 1062;
Barros, Amândio Jorge Morais (1993). “A procissão do Corpo de Deus no Porto nos séculos XV e XVI: a participação de uma confraria” in Revista da Faculdade de Letras. História. Série II, Vol. 10.º. Lisboa: Universidade de Lisboa.

Veja a localização desta rua no mapa