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Entrevista a Irene Buarque de Gusmão
Como se sente por ver realizada esta homenagem ao arquiteto Nuno Teotónio Pereira, no ano que marca o centenário do seu nascimento?
Estou emocionada... e achei uma grande ideia esta exposição, em que tiraram os desenhos das gavetas... porque a exposição está lindíssima e tem desenhos lindíssimos, aos quais o público nunca teve acesso! E as cópias estão impecáveis, parecem autênticos originais – está tudo no Forte de Sacavém, não é? Portanto, eu acho que o Nuno ia adorar esta exposição. Está muito bem montada. A ideia dos estiradores daquela época – eu ainda trabalhei um pouco em algumas coisas... não em projetos de arquitetura, mas em livros e as letras dos mapas que o Nuno fazia... então, era num destes estiradores que trabalhávamos.
Os projetos e desenhos aqui apresentados são obras de Nuno Teotónio Pereira, criados e construídos dentro dos limites da freguesia. Em 2010, quando foi homenageado pela Ordem dos Arquitetos, declarou “um grande amor por Lisboa’’, uma cidade onde sempre procurou contribuir para a beleza do espaço e para o bem-estar das pessoas...
É verdade! O Nuno era um orgulhoso lisboeta desde a infância, porque ele teve um pai maravilhoso nesse aspeto. Ele contava que aos cinco anos, aos domingos, o pai ia passear com ele num elétrico. Eles viviam na Lapa, então desciam a Calçada da Estrela e o pai ia mostrando a cidade... iam até à beira rio. E o Nuno, quando era pequeno, dizia ‘’eu vou ser teto, teto!’’.
Eu tenho cadernos dele, de desenhos infantis, e ele também era apaixonado por barcos. (...)
Os desenhos que eu tenho dele dessa altura são desenhos que ele fazia de memória, dos paquetes que via no Porto de Lisboa. Ele devia ter entre uns cinco e uns oito anos na altura... ele colocava a bandeira nos paquetes e tudo, mas os paquetes eram verdadeiros edifícios!
E depois, quando eu casei com ele, uma prima dele veio oferecer-me dois barquinhos do Nuno, que ele tinha desenhado e que mandava nas férias, por carta, para a tia.
Quem era o ‘Arquiteto nº 103’?
Era um homem de muitos interesses. Por exemplo, a nível de arquitetura, o ‘Franjinhas’ é um exemplo lapidado a esse respeito: ele pensava sempre na arquitetura de dentro de para fora. Ele gostava de fazer arquitetura para as pessoas! Para o conforto das pessoas.
Depois, quando apareceu aquela arquitetura no princípio dos anos 2000, aquela arquitetura que era muito escultura, ele e o Nuno Portas foram críticos porque eles funcionavam de outra maneira.
E nós notamos isso no “Franjinhas”, notamos esse conforto dentro da Igreja do Sagrado Coração de Jesus... outra coisa que ele cuidava imenso era da acústica – um concerto dentro da Igreja é muito bom, tem uma acústica fabulosa!
Ele cuidava de todos os detalhes: iluminação, temperatura, acústica, tudo.
Na sua opinião, qual é o maior legado que ele nos deixou?
Para mim é difícil... ele deixou a sua obra, que é muito importante, mas também a luta política que ele teve. Se não fosse o 25 de abril, eu não teria conhecido o Nuno e não teria vindo para cá, com Bolsa da Gulbenkian, para fugir de outra ditadura.
Eu cheguei cá em 1973 e conheci o Nuno em 1975, nós tínhamos uma diferença de 22 anos, eu nunca pensei que fosse casar com ele.
Mesmo no atelier, ele ouvia todos os jovens, ele dava espaço para todos falarem. O Nuno tinha muita abertura e tinha muita cultura, ele adorava geografia, ele fez um ano de Geografia e fez também um ano de Paisagismo, e também fez um ano de Economia. Ele sempre estudou bastante, ele preparou-se muito, ele lia muito e também adorava poesia, além dos livros técnicos que lia e dos livros sobre viagens – ele adorava viajar.
Eu nunca imaginei que o centenário dele fosse acontecer num ano de guerra... às vezes, eu acho que foi melhor para ele ter falecido antes de ter acontecido tanta coisa como o Covid, a guerra... para a sensibilidade que ele tinha, ia ser muito pesado.
Foi dramático ter ficado cego durante quase sete anos... para um homem com a profissão dele, perder a visão... eu sei o que é, eu também sou artista plástica. Mas ele nunca se revoltou porque ele tinha muita bagagem interior.
Nós líamos o jornal para ele ouvir todos os dias, ele ouvia o noticiário, e livros, por exemplo... as memórias do seu tio Pedro, a minha empregada lia-lhe aqueles volumes todos! Ele nunca tinha pegado naquilo, mas ele quis saber o que o tio tinha escrito nessa altura.